domingo, 3 de junho de 2012

"Se querem sair da crise, aumentem os salários"

Entrevista a Jan Toporowski, economista da London School of Oriental and African Studies, que esteve presente na Conferência Económica Internacional "Portugal na Encruzilhada da Europa", co-organizada em maio pelo Bloco de Esquerda e o Partido da Esquerda Europeia em Lisboa.
A crise da dívida apareceu depois da crise financeira. Quais as verdadeiras causas desta crise?
As verdadeiras causas da crise começaram em 2008, 2009. Foi quando o Banco Central Europeu - que refinancia a dívida dos governos - começou a financiar a compra dessa dívida ao preço definido pelos mercados. Antes disso, financiava a compra pelo seu valor nominal. Foi uma mudança nas práticas do BCE, que despoletou uma dinâmica desastrosa nos mercados. E aí nós apercebemo-nos que essa diferença de valores estava a ser paga pelo BCE e tornou-se cada vez maior. Em certa medida, isto tem a ver com o tamanho da dívida pública, que aumentou muito com a crise financeira. Os governos tiveram de financiar os bancos, que iriam à falência por causa das bolhas especulativas no imobiliário e nos mercados financeiros. O sistema financeiro europeu não estava preparado para esta coincidência de fatores. Não há na Europa o que há na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos: as pessoas sabem que por detrás do banco central está um governo e que os dois cooperam para ultrapassar a crise financeira.
Qual a razão de não existir esse enquadramento institucional na Europa?
Na Europa, esse enquadramento foi montado para imitar a situação alemã no pós-guerra e o papel do banco central europeu no pós guerra. Isto é uma situação invulgar que não existia em nenhum outro país na Europa. E por causa da estrutura da economia alemã, o banco central não tinha de intervir muito no pós-guerra e por isso parecia ser bem sucedido. Noutros países europeus, o enquadramento era diferente porque precisavam de uma cooperação mais próxima entre governo e banco central.
Com o início da crise, o BCE começou a emprestar dinheiro a bancos privados. Quais as consequências desta ação e como pode o BCE intervir em tempo de crise?
O que eles fizeram até pode ser entendido como certo à primeira vista: já que não podem emprestar dinheiro diretamente aos Estados, emprestaram aos bancos para estes emprestarem aos Estados indiretamente. Mas podiam ter feito coisas que não fizeram, como intervir de forma muito mais ativa no mercado secundário de obrigações para subir o seu preço. Ou voltar à anterior prática de manter descontos para obrigações da dívida pública ao seu valor real. Isso teria feito a diferença. Há uma outra solução muito simples: atribuir uma licença bancária a uma instituição pública, ou até privada, quer permitiria a essa instituição comprar ao BCE a juro baixo e investir em dívida pública a um juro mais alto. Isto iria dar liquidez ao mercado de obrigações da dívida.
Um dos argumentos para a recapitalização da banca é aumentar o crédito para a economia. Isto está a acontecer?
Eles compram dívida pública porque a banca privada na Europa não está a alargar os seus empréstimos. Por outras palavras, neste momento é muito lucrativo para a banca pedir emprestado ao BCE a juro baixo e comprar dívida pública com esse dinheiro. É isso que os bancos comerciais têm feito. Parece um investimento arriscado, porque há a ameaça de bancarrota, mas não há razão para que essa bancarrota aconteça ou para que os governos europeus não capitalizem os bancos comerciais e depois financiem esse capital com obrigações que esses bancos comprariam. Em princípio, isto pode fazer-se de acordo com as regras do FMI. Elas não impõem limites à dívida bruta dos governos e o FMI sempre insistiu que o número relevante é o da diferença entre a dívida do Estado e os ativos do Estado. Se fizermos isto, é possível começar a desenvolver condições de financiamento mais inovadoras, que apoiariam o mercado para as obrigações da dívida dos Estados.
O que pensa da receita da austeridade para resolver esta crise?
A austeridade não pode resolver a crise, só faz piorar a crise. Trata-se de uma falácia para quem pensa que as contas do Governo são como as contas lá de casa. Na realidade, os Estados precisam de se financiar de forma mais aventureira se querem dar estabilidade ao sistema financeiro.
E qual seria uma boa estratégia para países como Portugal e a Grécia?
Uma boa estratégia tem de ser contra-intuitiva: têm de começar por aumentar salários. Se aumentarem os salários, em especial os mais baixos, esse dinheiro será gasto na economia e reanimará a atividade económica e as receitas do Estado. Isto é muito difícil de fazer numa economia capitalista de mercado livre, mas podem fazer-se algumas coisas, como aumentar o salário mínimo e os salários dos funcionários públicos mais mal pagos, incentivar o emprego a tempo inteiro em vez de fragmentá-lo em empregos part-time. Isto teria um efeito positivo na atividade económica. Em segundo lugar, operações financeiras mais aventureiras para aguentar o mercado de obrigações da dívida. Isto é essencial para prevenir o colapso da banca. Precisamos disto para termos um sistema financeiro forte que possa apoiar as finanças do Estado.
Acha que Portugal ou a Grécia podem pagar a sua dívida nas condições que lhes estão a ser exigidas?
Não, não é possível. Ou melhor, há uma possibilidade: se criarem um imposto sobre os lucros bancários e usá-lo para pagar a dívida pública. É possível fazê-lo através de meios fiscais, mas para além disto não consigo imaginar outra maneira a curto prazo. A longo prazo é possível, se permitirmos o aumento da dívida pública e que o Governo possa gastar dinheiro até a inflação começar a aumentar e as receitas públicas aumentem a um ritmo superior ao crescimento da dívida. Isso causaria grande descontentamento na Europa, mas é uma maneira de o conseguir.
É favorável a uma reestruturação da dívida?
Sim, isso é essencial, mas penso que a reestruturação da dívida deve ser feita através de operações financeiras que transformem as dívidas com alto custo de financiamento em dívidas com baixo custo de financiamento. Isto é possível fazer e deve ser feito. Mas vamos ser claros: o nível de dívida pública na Europa não é assim tão alto. Se olharmos para os ativos de que dispõem os Estados, a dívida não é assim tão grande na Europa. Nunca nos podemos esquecer disto, apesar dos mercados já se terem esquecido. Foi a estupidez do Tratado de Maastricht, que impôs limites ao crescimento da dívida bruta em vez de limitar o crescimento da dívida líquida.
Nas próximas eleições gregas, estão a dizer aos eleitores que a opção é ficar no euro com a austeridade ou sair do euro. Não há uma terceira opção? E se a Grécia sair, o que acontece?
As escolhas não são essas, são falsas escolhas. Nos corredores do poder europeu discute-se a sobrevivência do sistema bancário. Se os governos entram em bancarrota, o seu sistema financeiro colapsa, porque os bancos gregos, portugueses, espanhóis e italianos têm muita dívida pública. Em certa medida, há aqui uma chantagem e contra-chantagem de ambos os lados. Não é preciso austeridade para ficar no euro. O que precisamos são formas inovadoras de financiamento, que são hoje dificultadas pelas restrições impostas aos bancos centrais na Europa.
Para além desse papel dos bancos centrais, o que teria de mudar na regulação dos mercados?
Em primeiro lugar, o BCE devia fazer o mesmo que fazem os bancos centrais britânico e norte-americano para apoiarem a dívida pública. E precisa agir de forma a controlar os mercados financeiros, quer através da regulação, quer comprando e vendendo nesses mercados, impedindo a especulação. É preciso impedir que os mercados financeiros continuem a arrasar a economia de tempos a tempos, como estão a fazer agora. Há uma necessidade real de controlar os mercados financeiros e este é um dos aspetos patológicos da crise atual: todo o problema está a ser escondido, porque quer os mercados, quer os governos, quer a troika, estão todos obcecados com a dívida pública.

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